Invocamos a Santíssima
Trindade cada vez que fazemos o sinal da cruz, que dizemos o Glória, o
Credo. Estas são as primeiras palavras religiosas que são pronunciadas
sobre nós ao batismo, estas serão as derradeiras que nos prepararão para
passar à vida eterna.
Todavia, o dia da
festa da Santíssima Trindade, instiga-nos a perguntar: porque este
mistério de um só Deus em três pessoas, que parece-nos tão abstrato e
enigmático, é o mais amado pelos contemplativos?
Santo Agostinho e
Santo Tomás respondem-nos: é por este ser o mistério supremo, que nos
manifesta a vida intima de Deus em sua infinita fecundidade; é o objeto
primordial da visão do céu, e se ele nos fosse plenamente desvendado,
todos os demais mistérios, a Encarnação redentora, a Missão do Espírito
Santo e a vida da Graça, seriam iluminados do alto e vistos em plena
luz. Eles são, com efeito, irradiações da Verdade suprema e da Vida
íntima de Deus três vezes santo.
I. A fecundidade infinita da Vida Divina.
Este
mistério manifesta-nos primeiramente a fecundidade ilimitada de Deus
Pai, que comunica a seu Filho a natureza divina e, por seu Filho, ao
Espírito Santo. É o dom de Si, o mais perfeito que se possa
conceber e a comunhão mais íntima. Ora, temos tanta necessidade de
aprender este generoso dom de Si mesmo, sobretudo nas circunstancias
dolorosas em que nos encontramos, na qual não encontramos o equilíbrio e
a paz senão doando o que podemos: a verdade que liberta do erro e a
bondade de coração que alivia os sofrimentos físicos ajudando-nos a sair
da escravidão do pecado.
Se
soubéssemos abrir os olhos, tudo nos convidaria ao dom de nós mesmos;
na natureza, o sol dá seu calor e sua luz, a planta adulta dá a vida a
uma outra, o animal a transmite aos seus filhotes e provê a sua
subsistência; o artista que entreviu a beleza, quer exprimi-la; o
pensador, que descobriu a verdade, quer divulgá-la; o apóstolo, que
possui a santa paixão do bem, quer fazê-la nascer nos outros.
Em todos os graus da escala dos seres, vemos que o bem é por si difusivo, bonum est essentialiter diffusivum sui,
diziam os antigos. E quanto mais elevada a sua ordem, mais se dá
abundante e intimamente. Ele atrai para si, fortifica, enriquece,
repousa.
Deus, que é o Soberano Bem, deve portanto ser soberanamente difusivo de Si, pois a bondade é essencialmente comunicativa.
Ele,
que é o princípio eminente de todas as coisas, o centro de onde sai a
vida da criação, contenta-se em dar o ser à pedra, a vida vegetativa à
planta, a sensitiva ao animal, a inteligência ao homem? Contenta-se em
dar e conservar aos justos a graça, participação de sua vida íntima?
Por que Deus não poderia comunicar além de uma participação de sua vida íntima, toda a sua vida, toda a sua natureza infinita?
Por que isto seria impossível, se o bem é essencialmente comunicativo, e
tanto mais abundante e intimamente quanto seja de ordem mais elevada?
Quem pode indicar um limite para a difusão que o Soberano Bem pode fazer
de Si mesmo?
Nossa
razão e mesmo a inteligência natural do anjo mais excelso, deixadas a
si, não poderiam responder com certeza a esta questão. Não poderiam
provar a possibilidade da Trindade, menos ainda sua existência. Este
mistério ultrapassa a esfera do demonstrável ou o alcance dos princípios
de nossa razão.
Mas,
a Revelação divina, já no Antigo Testamento, nos fez conhecer que Deus é
Pai e que Ele diz, no instante único da imóvel eternidade: Filius meus es tu. Ego hodie genui te. Tu es Meu filho, hoje Te engendrei 1. O prólogo de São João nos diz: No inicio era o Verbo, e o Verbo estava em Deus, e o Verbo era Deus 2. Ninguém jamais viu a Deus, mas o Filho unigênito que está no seio do Pai é quem no-lo revelou 3. O próprio Filho prometeu-nos o Espírito Santo, no-lo enviou em Pentecostes, e fomos batizados em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
A
Revelação divina fez-nos conhecer assim a infinita fecundidade da vida
divina através do mistério da geração eterna do Verbo, Filho de Deus, e
pelo mistério da processão do Espírito Santo.
Esta
fecundidade ilimitada, nós a veremos um dia a descoberto, e podemos
entrevê-la na penumbra da fé, em nós, recordando, com Santo Agostinho,
que nossa alma conhece a verdade e se doa por amor repousando-se no bem verdadeiro. Se purificamos de toda imperfeição esta “concepção da verdade” e este “élan do amor”, suspeitamos de longe alguma coisa do mistério supremo.
Na indigência de nossa vida intelectual, concebemos
lentamente nossas idéias que permanecem sempre muito imperfeitas, e que
são múltiplas porque cada uma delas permanece mui limitada. A linguagem
humana não carece, entretanto, de profundidade, se falamos de concepção
intelectual. A concepção é a geração inicial; mas, em nosso espírito, a
concepção intelectual carece de vigor e de fecundidade; ela não chega a
ser uma verdadeira geração. Por que? Porque cada um de nossos
pensamentos sucessivos não é senão um acidente, e acidente fugidio, uma
modalidade de nosso espírito; é preciso dizer o mesmo de nossas idéias:
não são pessoas vivas como o sujeito pensante. É por isso que estamos
sós com nossas idéias, não podemos entretermo-nos com elas; devemos,
então, buscar contato com outras inteligências humanas, das quais, às
vezes, muitas incompreensões nos separam.
Em Deus, ao contrário, o ato do pensamento não poderia ser um acidente,
uma modalidade de seu Ser espiritual e infinito. Deus é o Pensamento
sempre em ato, sempre subsistente, como um clarão de gênio genial
eternamente subsistente. E se, como diz a Revelação, ele concebe um
Verbo interior, o concebe não por indigência mas por superabundância. E
este Verbo interior não é tampouco um acidente, uma simples modalidade do espírito de Deus, mas é substancial, vivo, inteligente, como o espírito que o engendra. Aqui a concepção intelectual chega verdadeiramente a uma geração intelectual, que é inteiramente perfeita no instante único da imóvel eternidade. Esta geração eterna dá ao Verbo ser Luz de Luz, Deus de Deus, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro 4. Ele é o esplendor da glória do Pai e a figura de sua substância, como é dito na Epistola aos Hebreus 5.
Este
Verbo eterno, precisamente porque é soberanamente perfeito, porque
exprime adequadamente, tão luminosamente quanto possível, a natureza
divina, é único. É a imagem viva do Pai, é uma Pessoa como o Pai
que lhe comunica toda a vida divina, guardando para Si apenas sua
relação de Paternidade. O Verbo é mesmo tão perfeito, que em Deus não é
mais perfeito engendrar do que ser engendrado; o ser do Filho não é causado, mas comunicado,
é o mesmo ser do Pai que Ele, o Filho, recebe em Sua plenitude
infinita. Assim, segundo uma analogia muito distante, a do triangulo
eqüilátero, o segundo ângulo construído não é menos perfeito que o
primeiro, que lhe comunica toda a sua superfície, sem se comunicar ele
mesmo.
Por
pobre que seja em nós a concepção intelectual, ela nos permite, porém,
entrever de longe, à luz da Revelação, a geração intelectual que está em
Deus.
* * *
Porém,
como nossa alma, após ter conhecido a verdade, doa-se através de um
élan do amor que tende a repousar no bem verdadeiro, assim o Pai e o
Filho, por seu mútuo amor, são o princípio do Espírito Santo, a quem
comunicam toda a natureza divina, sem a dividir, nem multiplicá-la, tão
perfeitamente que não é mais perfeito ser o princípio desta processão ou
seu termo. Assim, ainda no caso do triângulo eqüilátero, o terceiro
ângulo, que procede dos dois primeiros, recebe toda sua superfície e
é-lhes perfeitamente igual.
A
amizade inefável das duas primeiras pessoas tem pois um termo, assim
como o pensamento do Pai possui um termo. Este termo do amor é
substancial, assim como o Verbo, termo da concepção; ele é vivo,
inteligente e amante como o Verbo, e como ele é uma Pessoa, espírito das
duas primeiras, seu vínculo, o Espírito Santo: como o Pai pode
entreter-se com Seu Verbo, ambos podem se entreterem com o Espírito de
amor. Eis a fecundidade infinita da vida de Deus desde toda eternidade
antes da criação. É a mais absoluta difusão de Si; e, como o dom do Pai a
seu Filho é soberanamente perfeito, o Filho é tão perfeito quanto o Pai
e, pela mesma razão, o Espírito Santo lhes é igual 6.
II. A comunhão das Pessoas Divinas.
Esta
soberana difusão é o princípio da mais íntima comunhão, exemplar
eminente da comunhão eucarística e mais ainda da união das duas
naturezas em Jesus Cristo.
Esta
comunhão é a mais estreita união de pensamento e de amor que se possa
conceber. Três pessoas vivendo da mesma verdade infinita, não por três
atos de pensamento, mas por um só e mesmo ato de pensamento, enquanto
tantas incompreensões nos separam freqüentemente uns dos outros, porque
cada um não vai ao máximo si mesmo. Três pessoas plenamente abertas,
cada uma às outras, e não se opondo senão por suas relações mútuas,
relações estas que ao mesmo tempo as une.
E,
então, enquanto que tão freqüentemente se opõe o egoísmo à perfeita
união das almas aqui embaixo, em Deus são três pessoas, que vivem do
mesmo Bem supremo e infinito por um só e mesmo ato de amor, sem o menor
interesse para Si. O Pai dá a seu Filho toda a sua natureza, o Pai e o
Filho comunicam-na ao Espírito Santo. O Pai não se distingue de Seu
filho senão por sua relação de paternidade, o Filho não se distingue do
Pai senão por sua relação de filiação, e isto mesmo que os distingue, os
une relacionando-os uns aos outros.
O
Espírito Santo não se distingue das duas primeiras pessoas, a não ser
porque procede delas. Fora destas oposições de relações mútuas, tudo
lhes é comum e indivisível. Esta é a mais íntima comunhão: a
consubstancialidade, que acarreta a unidade de pensamento e de amor.
Temos
disso um vestígio longínquo, porém ainda real, no símbolo do triangulo
eqüilátero que não é suficientemente conhecido. Os três ângulos, embora
possuindo a mesma superfície, são realmente distintos uns dos outros; eles são iguais; são essencialmente relativos uns aos outros e qualquer um dos três é tão grande quanto os três reunidos. Entre eles há uma ordem de origem, mas não prioridade de causalidade; do primeiro traçado procedem os outros sem que sejam causados por ele; ele lhes comunica sua própria superfície já existente, e eles não são em nada menos perfeitos que aquele.
III. Este Mistério supremo esclarece do Alto todos os demais.
Se
víssemos a descoberto a Santíssima Trindade, todos os demais mistérios
apareceriam em plena luz. Veríamos a pessoa do Verbo feito carne que
possui intimamente a alma e o corpo que ele tomou para nos salvar; ela
os possui na unidade de um só e mesmo ser, de um só e mesmo eu que é, sem confusão das duas naturezas, verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem.
Veríamos
derivar da pessoa do Verbo a plenitude da graça criada, que faz do
Cristo a cabeça da Igreja, a plenitude de luz, de glória, que lhe dá o
mais alto grau de visão beatifica, a plenitude de caridade que se
exprimiu no valor infinito de seus atos teândricos meritórios e
satisfatórios e que se expande ainda por sua intercessão sempre atual e
na distribuição de todas as graças que nos são concedidas.
Se
contemplássemos a descoberto a Santíssima Trindade, veríamos a união
admirável das duas naturezas em Cristo, união substancial, hipostática,
principio da união de suas duas inteligências e suas duas vontades, pois
sua inteligência divina e sua inteligência humana se vêem uma à outra
da maneira mais imediata e porque sua vontade divina e sua vontade
humana estreitam-se na mais perfeita e indissolúvel conformidade.
Se
víssemos o mistério supremo desvendado, veríamos em conseqüência qual é
a missão invisível do Espírito Santo nas almas dos justos, como Ele os
santifica e qual o valor das inspirações que lhes concede por seus sete
dons, para conduzi-los segura e prontamente para a vida do céu.
O
mistério da graça esclarecer-se-ia do mesmo modo. Nossa filiação
adotiva nos apareceria como uma similitude da filiação eterna do Verbo.
Veríamos então o sentido pleno e todo o alcance da palavra de São Paulo:
Deus (nos) predestinou a ser conformes à imagem de seu Filho, a fim
de que seu Filho seja o primogênito de um grande número de irmãos 7. Deus Pai tem um Filho único, a quem comunicou toda sua a natureza, para que ele seja “Deus verdadeiro de Deus verdadeiro”, e quis ter filhos adotivos, aos quais deu uma participação de sua natureza:
a graça santificante, gérmen que se desenvolverá um dia em vida eterna,
em visão imediata da essência divina e numa caridade que nada poderá
mais fazer-nos perder, nem diminuir no que quer que seja.
Então,
em cada alma bem-aventurada, Deus Pai continuará no instante único da
imóvel eternidade, a engendrar seu Verbo e com Ele fazer proceder o Amor
pessoal, “esta torrente de chamas espirituais” diz Bossuet, que os une
na mais íntima comunhão 8.
Quanto mais nossa alma cresce na vida divina da graça, mais ela é uma imagem viva da Santíssima Trindade.
No começo de nossa existência, o egoísmo faz que nós pensemos sobretudo
em nós mesmos e que nos amemos referindo tudo a nós; porém, se somos
dóceis às inspirações do Alto, virá um dia em que pensaremos sobretudo,
não em nós mesmos mas em Deus e em que, a propósito de todas as coisas
agradáveis ou desagradáveis, nós o amaremos mais que a nós e desejaremos
levar constantemente as almas para Ele.
Finalmente
nossa inteligência é convidada a repousar, como a de Deus, em Seu Verbo
eterno, e nossa vontade no Amor pessoal que não cessa de atrair-nos a
Ele, em meio às vicissitudes do exílio.
Mas para tal é necessário retornar sempre ao dom de Si do qual falávamos no começo. Por ele a alma se supera. A alma do viator,
do viajante para a eternidade, não encontra seu equilíbrio e paz senão
avançando, quer dizer, subindo em direção a Deus. Estando em viagem para
Ele, não podemos ficar estacionados; se a vida da alma não ascende, ela
descende; esta é uma lei para ela ascender como uma chama viva, até que
ela regresse ao seu princípio, até que retorne “ao seio do Pai” de onde
ela veio. A alegria de ser filho de Deus faz assim pressentir aquela
que teremos ao vermos a descoberto o mistério supremo, nesse instante
que não passará mais, o da eternidade.
Roma, Angélico.